quarta-feira, 29 de outubro de 2025

A Última Noite de Outubro

 O vento sibilava entre as frestas da janela, e o outono espalhava folhas secas pelo quintal. Dentro da casa antiga, Sonia acendia velas. O relógio marcava meia-noite. Halloween.

Fazia exatos três anos desde que Sabrina partira ,quinze anos, um riso doce e um tumor cruel que a levou rápido demais. Desde então, o mundo perdera a cor para Sonia. Vivia entre fotos, lembranças e o perfume que a irmã deixara impregnado nos lençóis.

Mas naquela noite, Sonia não queria apenas lembrar.
Ela queria ver.
Nem que fosse uma vez.
Nem que custasse caro.

Na mesa, dispunha objetos como aprendera em um livro antigo que encontrara num sebo: uma vela preta, uma branca, uma mecha do próprio cabelo e o colar que pertencia a Sabrina. Ajoelhou-se, o coração acelerado.

Só por uma noite... — sussurrou.

As chamas vacilaram. O ar pareceu engrossar. O silêncio da casa se tornou pesado, como se o tempo tivesse parado para observar o que ela fazia

Um frio percorreu-lhe a espinha.
E então, um sussurro.
Baixo. Familiar.
— “Sonia...”

O colar de Sabrina tremia sobre a mesa. As velas se inclinaram na direção da voz. Sonia sentiu o ar rarefeito, o chão girar. De repente, ela não estava mais na sala , ou estava, mas o ambiente era outro: a luz era azulada, as paredes pareciam respirar.

Diante dela, uma figura surgia.
Rosto pálido, cabelos soltos, olhos meigos.
Era Sabrina.

Irmãzinha... é você? — perguntou Sonia, chorando.

Sabrina sorriu, mas seus olhos traziam uma melancolia que Sonia nunca vira.
— “Eu senti sua falta, mas você não devia ter me chamado. Aqui não é lugar para vivos.”

Sonia se lançou para abraçá-la, mas o corpo de Sabrina era feito de névoa. A sensação foi gelada, como se o toque drenasse sua própria força.
Só mais um abraço, por favor! — implorou Sonia.

— “Você me prende quando não me deixa ir...” — respondeu a irmã, com a voz distante, quase como o vento entre árvores. — “Eu estou em paz. Mas você, Sonia... está presa ao que já morreu.”

Sonia caiu de joelhos, soluçando.
A imagem de Sabrina começou a se desfazer, e a luz das velas tremeluziu até se apagar.

Quando a escuridão tomou conta, apenas o colar ficou sobre a mesa agora quente, como se guardasse o calor de um último toque.

Na manhã seguinte, os vizinhos encontraram Sonia dormindo no chão da sala, com um leve sorriso no rosto e o colar entre os dedos. Pela primeira vez em anos, parecia tranquila.

Dizem que, naquela noite, alguém ouviu risadas de meninas ecoando pelo quintal  uma delas, doce e viva, como a de Sabrina.


Um pequeno conto para vocês que amam o Halloween.


Mulheres criadas por homens

 


Há algo de singular nas mulheres criadas por homens. Talvez porque cresçam observando o mundo sob um olhar diferente do que a sociedade costuma atribuir ao feminino. Desde cedo, aprendem que o amor pode vir em gestos silenciosos, em um cuidado prático, em uma proteção discreta, e nem sempre nas palavras doces ou nas demonstrações de afeto que o senso comum espera.

Essas mulheres costumam carregar uma força serena, uma forma direta de lidar com a vida, e uma noção muito clara de limites. Muitas vezes, tornam-se resolutivas, independentes e seguras de si, porque foram incentivadas a enfrentar desafios com coragem, sem esperar que alguém venha salvá-las. Aprendem, pela convivência, que a vulnerabilidade pode coexistir com a firmeza, e que a sensibilidade não as torna menos fortes.

Porém, há também um lado delicado nesse caminho. A ausência de uma figura feminina próxima pode fazer com que algumas demorem a compreender certos aspectos da afetividade e do autocuidado. Nem sempre sabem como acolher a si mesmas, afinal, foram ensinadas a resistir, mais do que a se permitir sentir. Aprender a se escutar pode ser o maior desafio de quem cresceu ouvindo que o silêncio é uma forma de força.

Mulheres criadas por homens, no entanto, trazem um equilíbrio raro: unem o raciocínio lógico com a intuição, a firmeza com a empatia, a independência com a doçura. São mulheres que aprenderam a se erguer sozinhas, mas que, com o tempo, descobrem que permitir-se ser cuidada também é uma forma de coragem.

No fim, não são melhores nem piores, apenas moldadas de um modo diferente. Forjadas entre gestos contidos, conselhos diretos e olhares que diziam mais do que palavras, elas carregam dentro de si um universo que mistura força e sensibilidade em medidas únicas. São prova viva de que o amor, quando é verdadeiro, transcende gênero, e se expressa de mil maneiras possíveis.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Texto para reflexão

 
Hoje vivi uma situação, no mínimo, curiosa, estranha e, ao mesmo tempo, cômica. Enquanto almoçava em um restaurante próximo ao meu trabalho, fui abordada por uma senhora que, de maneira direta, perguntou-me se eu apreciava usar bijuterias. Intrigada, perguntei sobre os preços, ela me respondeu que o brinco mais acessível custava em torno de R$ 35,00, valor que, confesso, considerei elevado para peças tão simples. Ainda assim, decidi, por educação, aceitar ver as peças.

No instante em que começou a retirar os acessórios da bolsa, colocou uma luva descartável, daquelas normalmente usadas para tingir cabelos como as usadas em consultórios odontológicos. Estranhei o gesto, mas ela prontamente explicou que suas mãos estavam sujas. Imaginei, então, que fosse um cuidado higiênico para não manusear as peças com as mãos descobertas, hábito que algumas pessoas incorporaram após a pandemia.
Logo em seguida, ela exibiu os brincos, todos dentro de pequenos saquinhos plásticos individuais. Mais uma vez estranhei, mas bastou observar as cores e o material para perceber que se tratava de bijuterias de baixa qualidade, do tipo que escurece já no primeiro uso. Para não ser indelicada, comentei que já possuía modelos semelhantes e, ao apontar para uma das peças, acabei tocando nela sem querer.
Foi nesse momento que a conversa tomou um rumo desagradável . A senhora perguntou se eu era evangélica; ao responder que não, iniciou um discurso carregado de versículos bíblicos, ressaltando que era evangélica e, por isso, não matava nem roubava. Em tom insistente, afirmou que mencionava aquilo porque eu havia tocado nas bijuterias e que Deus a havia advertido em determinada passagem bíblica. Em outras palavras, insinuou que, por eu não ser “de Deus”, não deveria sequer ter encostado em suas mercadorias.
Fiquei refletindo: como alguém com tal postura pretende comercializar seus produtos? Afinal, se os clientes não podem sequer tocar nas peças, como haveria de vender? E o que faria se uma compradora desejasse provar um brinco ou examiná-lo de perto, fora do plástico?

A Última Noite de Outubro

 O vento sibilava entre as frestas da janela, e o outono espalhava folhas secas pelo quintal. Dentro da casa antiga, Sonia acendia velas. O ...